O Mito de Oxossi na Civilização Yorùbá

O Mito de Oxossi na Civilização Yorùbá

É importante ressaltar que o panteão dos (Òrìṣà Leia-se Orixá). Tal qual o conhecemos, é algo muito mais da diáspora do que da tradição puramente africana. Normalmente na região yorùbá, tradicionalmente são cultuados os Orixás relacionados com o herói mítico da cidade, ou a divindade da cidade e os que a ela de alguma forma se relacionam, o que dá em torno de uma média de seis ou sete orixás mais presentemente marcados em cada cidade. Outro fator que não podemos esquecer é que muitas divindades que desempenhavam papeis similares nas diferentes cidades yorùbás, mahis, daomeneanas, jejes, tapa, baribá, acabaram se fundindo em um só mito na diáspora, já que na própria África trocavam características. 

Òrìṣà Leia-se OrixáNota no alfabeto yorùbá, não existe o plural como por ex; Orixás

Aqui geralmente prevalece a divindade tal qual os yorùbás denominavam, mas isso não quer
dizer que não há influência de outras divindades de outros povos vizinhos, aos
yorùbás na construção desses mitos que temos como sendo totalmente
yorùbás na diáspora. O próprio caráter de aculturação muito forte em tradições
subsaarianas beneficia este fenômeno no caso na região de toda chamada
costa da Guiné, que é nosso foco em se tratando dos yorùbás. 

Isso tudo para dizer que o mito que conhecemos como Ọ̀ṣọ́ọ̀sì = Ọ̀ṣọ́ọ̀sì na diáspora tem elementos de mitos como o daomeneano de Age (senhor da caça) e Erinlé (deus da caça de região Yorùbá). Ọ̀ṣọ́ọ̀sì é conhecido como sendo um rei mítico do Ketu, que comentaremos mais quando for falar de seu papel na história deste reino Yorùbá quando supostamente desempenhou as funções de Alaketu. Essa função o torna muito importante no que conhecemos na diáspora como a nação do Ketu (pois nações como conhecemos se referem ao candomblé, que por sua própria natureza é uma religião nascida na diáspora e não é uma cópia fiel ao que chamamos de ile-òrìṣà da África Yorubá, ou mesmo o culto dos Voduns do Daomé, onde não existem nações e nem deram necessariamente origem direta às nações do candomblé da diáspora, como nos evidencia Salami em suas aulas).

Contudo também há hoje uma via de mão dupla entre as tradições da América e da África, e muito graças à função de Ọ̀ṣọ́ọ̀sì na diáspora, ele se torna conhecido e ganha força de culto em cidades africanas yorùbás onde normalmente, não fosse por isso, não deveria ser cultuado ou lembrado. Graças a seu papel na diáspora ele é lembrado em cidades e regiões que tem seus mitos da caça, como evidenciam correspondentes africanos que fornecem material de pesquisa, ao se referirem a Ọ̀ṣọ̀ọ̀sì; isso mostra que este processo de aculturação ocorre também, de modo não tão intenso, e em mão dupla, sobretudo por se tratarem de pessoas de outras cidades yorùbás distantes da influência cultural do Ketu.

1 – Ọ̀ṣọ́ọ̀sì, rei do Ketu e Senhor dos Caçadores Duas pequenas lendas extraídas da memorável coletânea de Prandi, Mitologia dos Orixás sintetizam bem este papel, A primeira trata de um aspecto importante sobretudo na diáspora onde Ọ̀ṣọ́ọ̀sì é caçador e nos dá conta de como o Mito de ògún ( responsável pela sobrevivência, e na maioria das cidades yorùbás senhor da caça, por ter ensinado ao homem como caçar) transfere este papel para seu irmão Ọ̀ṣọ́ọ̀sì.

Ọ̀ṣọ́ọ̀sì é irmão de Ògún
Ògún tem pelo irmão afeto especial.
Num dia em que voltava da batalha,
Ògún encontrou o irmão temeroso e sem reação,
Cercado de inimigos que já haviam destruído quase toda a aldeia
E que estavam prestes a atingir sua família e tomar suas terras
Ògún vinha cansado de outra guerra,
Mas ficou irado e sedento de vingança.
Procurou dentro de si mais forças para continuar lutando
E partiu na direção de inimigos.
Com sua espada de ferro pelejou até o amanhecer.
Quando por fim venceu os invasores,
Sentou-se com o irmão e o tranqüilizou com sua proteção.
Sempre que houvesse necessidade
Ele iria até seu encontro para auxiliá-lo.
Ògún então ensinou Ọ̀ṣọ́ọ̀sì a caçar.
A abrir caminhos pela floresta e matas cerradas
Ọ̀ṣọ́ọ̀sì aprendeu com o irmão a nobre arte da caça,
Sem a qual a vida é muito mais difícil,
Ògún ensinou a Ọ̀ṣọ́ọ̀sì a cuidar de sua gente.
Agora Ògún podia voltar tranqüilo para a guerra
Ògún fez de Ọ̀ṣọ́ọ̀sì o provedor
Ọ̀ṣọ́ọ̀sì é irmão de Ògún
Ògún é o grande guerreiro
Ọ̀ṣọ́ọ̀sì é o grande caçador.

Esta lenda explica assim a atribuição do papel de caçador a Ọ̀ṣọ́ọ̀sì, sobretudo na diáspora onde convive com o mito de Ògún (que na maior parte das cidades africanas yorùbás é também o caçador além do guerreiro). Outra lenda importante a se citar, dentro da coletânea de Prandi é a que atribui a Òrúnmìlà a coroação de Ọ̀ṣọ̀ọ̀sì como Alaketu, que provavelmente pelo simples fato de citar Òrúnmìlà deve ter origem na versão de algum ese Ifá, ou Itan Ifá de algum dos 256 Odus do corpus dos Odus de Ifá.

Ọ̀ṣọ́ọ̀sì ganha de Òrúnmìlà a cidade do Ketu
Certo dia, Òrúnmìlà precisava de um pássaro raro Para fazer um feitiço de Òṣún = Oxum.
Ògún e Ọ̀ṣọ́ọ̀sì saíram em busca da ave pela mata adentro, Nada encontrando por dias seguidos.
Uma manhã, porém, restando-lhes apenas um dia para o feitiço, Ọ̀ṣọ́ọ̀sì deparou com a ave e percebeu que só lhe restava uma única flecha Mirou com precisão e a atingiu. Quando voltou para a aldeia,
Òrúnmìlà estava encantado e agradecido com o feito do filho, Sua determinação e coragem.
Ofereceu-lhe a cidade do Ketu para governar até sua morte Fazendo dele o Òrìṣà = Orixá da caça e das florestas. Relembrando as funções do mito segundo Campbell e relacionando com o papel de Ọ̀ṣọ́ọ̀sì tanto na diáspora quanto na região onde seu mito tem maior influência na África, vemos que a função mística talvez tenha suas particularidades em cada um dos casos, mas se aproximem de alguma forma. A função Cosmológica que tem na diáspora, algumas vezes é a que ògún tem na maior parte do Mundo Yorùbá onde Ọ̀ṣọ́ọ̀sì não é conhecido popularmente, o que lhe atribui papel único e de maior importância na diáspora no contexto do panteão de mitos que nossas senzalas criaram, a partir dos mitos fundadores de cidades de onde vinham os africanos da costa da Guiné na época colonial. Apesar disso, sua função sociológica, na África, sobretudo no contexto do Ketu e região é muito mais importante do que na diáspora, pois seu culto como divindade de cidade delineava toda uma estrutura de corpo social que o relaciona com o poder do Alaketu. Isso não necessariamente ocorre na diáspora com a mesma intensidade, se restringirmos o seu papel sociológico à criação  do corpo social de sacerdotes da nação de candomblé do Ketu o que não se aproxima nem de longe do significado da consolidação de poder e tradição de um reino africano como o Ketu, apesar da influência que esta estrutura da realeza Sagrada Africana possa ter trazido à estrutura do corpo social de sacerdotes da Nação do Candomblé que conhecemos na diáspora. 

Esse é um motivo pelo qual devemos nos ater a seus Orikis para entendê-lo melhor neste contexto sociológico na África e não nos contentarmos com suas lendas para decodificação deste mito. Outro fator que torna necessária a interpretação de seus orikis é este mito em sua função pedagógica, pois na diáspora temos o desenvolvimento deste mito em uma realidade urbana muito diferente da africana. Esta realidade africana faz com que a função pedagógica do mito de Ọ̀ṣọ́ọ̀sì tenha funções marcadamente mais pragmáticas e menos simbólicas na África e o inverso disso na diáspora. Orikis de Ọ̀ṣọ́ọ̀sì, os códigos de caça e a importância das linhagens para os caçadores.

Para entender melhor os códigos dos caçadores devemos nos aproximar dos gêneros literários yorùbás do Ijala e Iremoje que são por sua vez os cantos e poemas de glória e lamento dos caçadores. São grandes poemas épicos que tratam de todos os aspectos das vidas destas personagens fundamentais no
contexto da sociedade yorubá, onde em muitos reinos, não raro, desempenham também um papel político importante nos conselhos. Este papel torna ainda mais importante e relevante o estudo dos Iremoje e Ijala. 

Talvez justamente pela riqueza simbólica abundante dos Iremoje e Ijala, os Orikis de Ọ̀ṣọ̀ọ̀sì não sejam assim tão extensos, e pelo contrário condensem em seus versos uma série de significados que possam vir a serem aplicados em diversas situações, mas que sobretudo tangem aos significados que se
relacionam com as funções sociológicas e pedagógicas do mito, deixando subentendidas, ou menos evidentes, as suas funções místicas e cosmológicas.

Uma das características dos caçadores é sua força, outra é sua coragem, sobretudo se lembramos da origem comum dos mitos de caçador e guerreiro, anteriormente projetada em ògún. Quando escutamos o verso de Oriki de Ọ̀ṣọ́ọ̀sì.

Olhar uma infelicidade não estraga o olho” entendemos melhor a sugestão de coragem para enfrentar situações difíceis que está presente tanto no código dos caçadores, que sem dúvida têm 
suas origens nos códigos dos guerreiros. Vemos neste verso a função pedagógica do mito fortemente presente, ainda mais se não nos distanciarmos do fato que Oriki delineia imagens a serem feitas. Contudo, os caçadores, apesar de se aproximarem dos guerreiros em seu código de coragem, tem características diferentes, e seu tipo físico ideal pode ser diferente destes guerreiros. Agilidade para um caçador é mais importante que a força física no contexto do ofício a se desempenhar. Quando ouvimos o verso de Oriki de Ọ̀ṣọ́ọ̀sì: “Ele não é vigoroso, mas é inteligente” em uma referência ao 
próprio Ọ̀ṣọ́ọ̀sì, podemos entender melhor este ideal físico e mental do caçador em relação ao que temos em relação ao guerreiro. 

Aqui de novo a função pedagógica ganha espaço através de uma simples descrição.
Outro verso de Oriki de Ọ̀ṣọ̀ọ̀sì que além da função pedagógica, também sugere uma função sociológica através de uma observação sobre determinado comportamento social é: 

“Ele não quer saber que o chefe mandou fazer um
trabalho comum na casa quando ele pega sua enxada para ir à roça. 
Se alguém trabalhar perto dele na roça encontrará o que comer”

Ao construirmos as imagens deste verso temos claramente a função do jogo de Ordem e transgressão da Ordem presentes nos mitos dos Òrìṣà = Orixás Alaketu (Èṣù = Exu e Ọ̀ṣọ́ọ̀sì). No caso temos o triunfo da Ordem sob a subversão da mesma, por estarmos falando de Ọ̀ṣọ́ọ̀sì, que representa a Ordem neste contexto dos Òrìṣà Alaketu (assim como seu próprio instrumento, que é o arco, representa simbolicamente, por apontar a direção a seguir, em contraste ao porrete de Èṣù, que destrói o que se estabeleceu). Nestes versos temos simbolicamente que o objetivo comum de um grupo (de agricultores e caçadores no caso) deve ser adotado por cada um como um objetivo individual, pois somente se o objetivo comum for tomado com a devida importância por cada um dos integrantes, 
o grupo encontrará sucesso em sua empreitada.

Estes versos constroem a imagem do homem que toma este objetivo coletivo como um objetivo individual que se relaciona com a própria sobrevivência. Isto nos faz entender mais sobre a função pedagógica que este mito assume entre esse povo através da construção deste código de caçadores, (e agricultores em outra fase consequentemente posterior ao período de caça e coleta na qual esse mito também se enquadra no código de sobrevivência). 

Podemos assim verificar o quão importante é esse mito neste código que ao mesmo tempo legitima a importância da criação de um corpo social (de caçadores), e delineia comportamentos aceitáveis para o trabalho em grupo (em sua função pedagógica) e o sentido de Ordem que esse Òrìṣà Alaketu traz em seu significado.

Outros versos de Oriki de Ọ̀ṣọ́ọ̀sì que nos remetem a seu sentido pragmático relacionado à sobrevivência e evidenciam o aspecto pedagógico do mito são: “O proprietário da casa conhece o lugar onde a superfície da terra é seca” e também ” A erva é boa no lugar alto” . O proprietário da casa se refere diretamente a Ọ̀ṣọ́ọ̀sì como Òrìṣà Onile (que veremos mais a frente em detalhes quando formos falar sobre Ọbàlùàiyé), e que dá o sentido ao que firma suas bases em um local que será sua morada e cria o próprio sentido de pátria. Isso mostra a necessidade de se conhecer o local que irá viver e saber o
quanto seguro ele é, como também na práxis deste povo saber onde é ”boa a erva” pode representar evitar se envenenar ou não. (assim como na práxis dos Esquimós saber a diferença dos diversos tipos de neve que se expressam com nomes diferentes pode significar viver ou morrer). Ambos os casos mostram
em situações pragmáticas que as imagens dos versos de Oriki formam o mito em sua função pedagógica. Aqui encontramos também o sistema uma semente do sistema de racionalidade deste povo.

Para prosseguir dentro das diversas funções que formam a grande função civilizatória de um Mito de Òrìṣà, vemos no verso de Oriki de Ọ̀ṣọ́ọ̀sì “Quando alguém não tem família, ninguém chora sua morte”, a importância das linhagens nos códigos de caçadores, o que não somente para os yorùbás, mas também para a maioria das civilizações subsaarianas, assume grande importância. Aqui a função sociológica está presente de forma muito intensa. Pois sugere a própria constituição de uma célula social (como a família) como ritualisticamente fundamental no momento da morte. Isso simboliza em si a necessidade de dar continuidade à sociedade através da formação da família, a importância de fazer parte de uma linhagem em um contexto social (como da maior parte das sociedades subsaarianas).

Em outra dimensão, alude à própria sobrevivência das sociedades a partir das linhagens que as formam, e pelas quais se organizam. Demonstra que fora desta estrutura de linhagens não há a tradição que mantenha vivo o espírito daquela coletividade, e não há espaço para que se desenvolva um corpo social que possa ser desvinculado desta estrutura. Isso, em última instância, pode ajudar a explicar muito da estrutura social e inclusive a escravidão doméstica em determinadas sociedades subsaarianas. 

Neste aspecto o mito vai além das estruturas sociais dos períodos de caça e coleta e agrícola e se aplica também ao contexto da urbanização, que manteve sua estrutura igualmente nas linhagens que se estruturavam nestes períodos anteriores nos quais este mito tem suas funções mais claramente marcadas.
Para concluir, vemos no verso de Oriki de Ọ̀ṣọ́ọ̀sì: 

“O alforje está ao nosso lado como um amigo sincero”, algo que também está muito presente nos Ijala e
Iremoje, e que relacionam diretamente o Mito de Ọ̀ṣọ́ọ̀sì com o ofício de caçador, e não deixa dúvidas desta sua relação com seu código, conforme visto, como sendo um dos códigos que no imaginário coletivo deste povo em seus aspectos místicos, cosmológicos, sociológicos e pedagógicos, constituem
sua função civilizatória que o relaciona diretamente com a sobrevivência.
Fontes – Ivan Poli

Òkè Arò Ọ̀ṣọ́ọ̀sì.

admin

Deixe um comentário