O Mito de Oxumarê Para os Yorùbás

O Mito de Oxumarê Para os Yorùbás

Originalmente o Mito de Òṣùmàrè para os Yorubás era uma adaptação de diversos mitos das tradições Fon e Jeje e mais propriamente Mahi da serpente Dã ou Dan. Este mito é trazido para terras Yorubás do Leste assim como os mitos de Ọbàlùàiyé e Nanã tal qual conhecemos.

No imaginário comum da diáspora, Òṣùmàrè é tido como o Ser andrógino por excelência, e trataremos do assunto com mais atenção no decorrer deste texto para expressar como essa relação de androginia vem significar uma das expressões do duplo nas relações de poder na África Subsaariana.

Para introduzir este mito.. uma lenda conhecida na diáspora em muitos Candomblés de Salvador e que apresentam bem como os mitos do Daomé se integraram ao panteão Nagô e conversam de maneira estreita entre si na diáspora.

Nana Buruku era a esposa de Obatalá e ao engravidar vai consultar o Ifá para saber qual seria o destino de seu filho. Ifá lhe revela que o filho que Nana trazia no ventre seria tão belo quanto o Sol e teria o poder do Sol (que somente seu pai Obatalá tinha entre os Orixás).

Baseada nisso Nanâ acredita que com o poder do filho que carregava no ventre poderia depor Obatalá do trono e governar através do poder de seu filho. Ao descobrir os planos de Nana, Obatalá a desterra grávida para o pântano dos mangues e disse que ai seria seu domínio e nesta podridão encontraria seu reino. Nanâ contudo restava esperançosa que
seu filho ao ser tão poderoso como o Sol pudesse lhe trazer de volta ao poder.

Deveria se chamar Ọbàlùàiyé (Senhor da Terra). Ao nascer , a criança vem toda coberta de pústulas de varíola e revoltada Nanã a abandona à beira do Mar para que servisse de comida aos caranguejos. Quando os caranguejos se aproximarem do menino pelo cheiro de suas pústulas, os caranguejos, a criança chora e Yemọjá ouve seu choro e vem em socorro a ele e o salva da Morte. Yemọjá que com o desterro de Nana torna-se a primeira esposa de Obatalá, cria o menino e o ensina que sua mãe deveria ser perdoada. Do outro lado, Nana pelo fato de ter abandonado o filho e descrer das palavras de Ifá é castigada pelo Destino. Ifá lhe prenuncia que teria outro filho. Este novo filho seria a criatura mais bela já vista e ao mesmo tempo a mais temida quando se aproximasse de sua mãe Nanã.

Este seria seu castigo por ter duvidado de Ifá. Nasce então Òṣùmàrè que era ao mesmo tempo Arco Íris em seu aspecto masculino e uma cobra em seu aspecto feminino ( que era o único aspecto no qual Òṣùmàrè poderia se aproximar de sua mãe Nanã ). Nanã sentia grande tristeza ao ver o Arco Íris e não poder tocá-lo e que sempre que se aproximava dele ele desaparecia e restava somente a cobra na expressão de seu filho Òṣùmàrè.

Nana percebe que no lodo e na lama tudo renasce e se regenera, pois quando bate o sol no mangue formam-se arco-íris pequenos que eram a expressão de seu filho mais belo e promovia a regeneração da vida que ali se produzia. Ela compreende então o segredo de seus domínios (o pântano) e a regeneração que ele promovia e resolve então se regenerar e pedir perdão a seu filho Ọbàlùàiyé por tê-lo abandonado, desistindo de vez de obter o poder de Obatalá e vai procurar Yemọjá.

Yemọjá prepara Ọbàlùàiyé para ver sua mãe, que já adulto cobria o rosto e corpo com palhas para que não vissem seu corpo coberto de pústulas e não o rejeitassem como sua mãe o rejeitou. Ao ver Nana, Ọbàlùàiyé resiste, mas a pedido de Yemọjá abraça sua mãe Nana a perdoa e pede que ela nunca mais o abandone. Neste momento a profecia de Ifá se faz verdadeira e todas as chagas de Ọbàlùàiyé se transformam em luzes tão fortes como a do sol, que fizeram com que continuasse a cobrir seu corpo, pois aquela luz era capaz de curar as mais terríveis doenças ou mesmo conduzir ao mundo dos mortos aqueles que deveriam para ele prosseguir.

Ọbàlùàiyé ganha então com sua mãe Nana o reino dos Mortos, passa a agir com sua luz para curar ou redimir os homens de suas dores e torna-se o senhor da Terra. Òṣùmàrè também perdoa sua mãe e passa a representar aquele que tem o caminho entre este e o outro mundo (Orun e Aiye) na expressão da Cobra e do Arco-Íris ”.

Conforme podemos notar, Òṣùmàrè nesta lenda da diáspora também tem o papel de promover o equilíbrio entre poderes através de seu caráter duplo, o que é uma influência indubitável do papel de Dã no Daomé. Além disso, percebemos na lenda a socialização e integração dos Deuses Yorubás de cidades diferentes assim como outros originalmente do Daomé como se fizessem parte de um só panteão. Nisso vemos uma característica muito presente na diáspora e que pode nos contar muito da história de como as tradições na diáspora se reconstruíram nos espaços das senzalas.

Òṣùmàrè, Dã, a serpente arco-íris, o ser andrógino e o duplo

Como nos diz Balandier:
“As mitologias africanas em sua maior parte, atribuem um espaço privilegiado à relação homens/mulheres e são essenciais nas argumentações próprias destas mitologias. A relação aparece em ao menos três momentos. Nas lendas da criação, aonde ela figura como relação primordial: ligação de significação e que explica esta criação. Nos modelos de interpretação que revelam por simples comparação o frequente recurso ao simbolismo sexualizado a fim de explicar a ordem do mundo, da constituição da “pessoa” e das primeiras obras civilizatórias dos homens em sociedade.”

Dessa forma, podemos perceber que muitas vezes, como reprodução destas relações se estabelecem relações de poder. Balandier nos explica melhor sobre o fato, falando justamente do papel de Dã entre os Fon do Daomé no contexto da criação Mítica do Universo para este povo: Os Fon do Daomé….Suas lendas míticas , apresentam não uma criação única e acabada, mas uma série de criações sucessivas…A origem se encontra na divindade Andrógina, que dispõe de proeminência sobre todas as figuras do
panteão daomeneano mesmo que ela mesma não seja um objeto de culto.Tratase de Nana Buruku, que simboliza o começo absoluto. As narrações míticas a evocam como origem criadora dos materiais a partir dos quais o “Mundo” se constrói e se ordena. Este última tarefa pertence ao casal Mawu- Lisa.

Do qual Nana foi o criador… A genealogia dos deuses corresponde à das criações , do domínio das forças pelas quais o universo se mantém em ordem assim como também os homens…Mawu é a fêmea, Lisa o macho; sua definição se lhes apresenta como gêmeos e às vezes como uma pessoa de duas faces capaz da auto-fecundação. Qualquer que seja a interpretação, é através de sua união. ou unidade- que consiste a base de toda organização no universo e na sociedade… Mawu e Lisa exprimem esta união tensional. Eles são associados a duas séries de atributos e de símbolos contrários e ao mesmo tempo unidos…A
associação dual se apresenta, ao mesmo tempo, sob seus aspectos positivos (de complementaridade organizadora) e negativos ( a diferença geradora de conflitos). Sua intervenção é necessária mais insuficiente…Uma outra figura , portanto, é responsável pela ordem da criação juntamente com Mawu e Lisa : Dã força enquanto pessoa e capaz de múltiplas manifestações.

Esta nova entidade se identifica à ordem vivente, aos agentes de prosperidade, acontinuidade do curso do tempo. Ela gera o movimento no sentido da ordem primordial …Dã é concebida sob forma de divindade andrógina ao invés de par de gêmeos, dizem que ele é dois em um.”

No panteão yorùbá que conhecemos na diáspora, há basicamente três divindades andróginas principais e que são Òṣùmàrè, Lógun Ẹ̀dẹ e Òsányìn

Como nos sugere Balandier, este ser andrógino representado por Dã vem legitimar e contribuir com a ordem final das coisas e do universo, tendo o mito neste contexto, sua função cosmológica que ajuda a explicar o universo e sua formação.

Segundo nos sugere este autor, na maior parte das sociedades subsaarianas, a figura do feminino e das divindades femininas como Mawu está relacionada à desordem e ao caos. Já a figura masculina e das divindades masculinas como Lisa e Ogum está relacionada à ordem. Em nosso mundo judaico cristão ocidental e também no islâmico, em nosso imaginário formado a partir destas civilizações a ordem se estabelece a partir do masculino, o criador é um Deus Homem que, assim como nas sociedades
subsaarianas, assume no masculino o papel da ordem e no feminino o papel da desordem e do caos (podemos tentar achar isso no Ocidente se nos atermos ao que foram as feiticeiras na Europa na Idade Média, ou se analisamos miticamente os papéis de Lilith e Eva nas civilizações onde aparecem na Antiguidade, entendemos isto melhor).

É comum para nós, em nossa sociedade ocidental, que aceitemos em nosso imaginário que este masculino, que é a Ordem, reprima a desordem do feminino e estabeleça a ordem do Universo, o que pode nos esclarecer das visões sexistas que temos em nossas estruturas sociais.

Na lógica dos Fon do Daomé e de grande parte das sociedades subsaarianas, este ser andrógino, no caso na figura de Dã, aparece como o regulador da ordem, pois como concluímos ao ler Balandier e Verger, o princípio do Masculino (ordem) não conhece a essência do feminino (desordem) e não pode assim estabelecer a Harmonia nem no contexto cosmológico, nem no sociológico (cosmos e sociedade).

Esta harmonia só pode ser estabelecida por um ser que tenha em si os dois elementos, pois Ordem e desordem (transgressão) fazem parte do papel civilizatório dos Mitos.

Entendemos melhor quando recorremos aos papéis de Ògún e Èṣù conforme muitos mitos, que Ordem e transgressão se equilibram e se alternam no processo civilizatório. Da mesma forma que o duplo se equilibra entre ordem e transgressão, é necessário que masculino e feminino se equilibrem e só quem tem em si os dois princípios pode promover este equilíbrio.

Fonte de pesquisa: Ivan Poli, Bernard Maupoil, Pierre Verger, Paul Mercier.

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